domingo, 17 de março de 2013

SAL VERMELHO


O que vou contar ocorreu entre o dia 27 de março e 26 de junho de 1928. Durou 13 semanas exatas, ou 91 dias, de acordo com a memória de Demétrio Alexandrino Queirós, mestre em capação variada (de frango a elefante) e maçom renegado, inscrito no Livro Negro por desvios singulares e bem humanos.
Não fosse o povo de Cauaçu reles e egoísta, gente ordinária e pedan­te, devotada aos pecados sem prazer  - visto que são perdoados os pecados que alegram os sentidos e podem ser divididos em sua prática, como os de cama e mesa; e nefandos os do êxtase solitário, como os da avareza, da soberba e do onanismo -   não guardaria na memória a narração de Demétrio, uma das estórias exemplares    do sertão alto.
Convém gastar mais um pouco de tempo com a geografia física e moral de Cauaçu, para o bom en­tendimento do castigo. Ilha de terras roxas e úmidas, tão molhadas que os raríssimos calhaus chegavam a suar em pleno verão, o município era também o único ponto, em toda a comprida chapada, de chuva regular. Chuva fina, como se São Pedro tivesse ins­talado um chuveiro maneiro em cima daquele pedaço. Com água de cima e água de baixo, nascia ali o Cauaçu que, ao contrário de todos os rios, não crescia: descendo rumo ao Carinhanha entrava em terras sequíssimas e esponjosas, e acabava por desaparecer, reduzido a mero rego de palmo e meio, no Açude Velho, valhacouto dos restolhos humanos de toda aquela vasta e outrora esquecida zona.
Cauaçu era cidade dos paióis sempre cheios, de porcos de 15 arrobas,  arroz de soca, de três cortes e espigada cheia, e gente que chegava aos 90, cavalgando em pêlo e sem dor nas cadeiras. Mas – e isso era o que mais espantava os raros visitantes – não havia, no mundo inteiro, canalhas tão bem acabados. Primeiro, eram de especial avareza. Desde tempos muito velhos, juntavam ali suas moedas de ouro. Fazia-as mestre Cirilo, filho e neto de outros Cirilos, e punha em cada uma delas a efígie do cliente, cercado de seu nome e, no anverso, as armas de Cauaçu: pé-de-meia cheio e a frase antiga: "Vintém poupado, vintém ganho.” Tais moedas não circulavam: estava convencionado, e havia muito, que era a maior desonra desfazer-se de uma só delas. Cirilo não só as marcava, bem como as numerava e delas mantinha registro.
O arraial de Açude Velho, depósito da ralé, fora fundado por Negra Jovina, amásia do beato Mané Consola, morto por uma patrulha da Força Pública, em episódio que não cabe aqui, e fica para ser contado depois. Jovina  juntou ali cegos, leprosos, sifilíticas, aleijadas, abobados. Deus sabe como conseguia mantê-los, cozinhando raízes do mato, fazendo sopa de ervas do brejo e, segundo injuriosa gozação do pessoal de Cauaçu, assando pererecas e gafanhotos.
No início de março de 36 passou pela estrada, ao lado do Açude, um circo mambembe, e houve o acidente. Uma das moças, grávida de meses, caiu do cavalo,  abortou. Teve hemorragia brutal, ia morrer, e a salvou Jovina com benzedura, sal vermelho e  chá de osso de capivara. O dono do circo ficou conhecendo a história do arraial desprezado. Houve então o convite: aparecessem na Quinta-feira, em Cauaçu – a primeira função do circo seria apenas  para eles. No sábado seguinte, o espetáculo começaria oficialmente.
É fácil saber como reagiu aquela gente ordinária de Cauaçu, desviada dos mandamentos de Cristo e entregue à volúpia do ouro, quando soube do descabido privilégio. Encomendaram a De­métrio a capação do elefante, que dormia ao lado do circo, descuidado. Deram-lhe dose brutal de clorofórmio, e o bicho arriou. Demétrio fez o serviço, suturou o corte e passou creolina. Depois mandaram o cabo e os quatro soldados do Destacamento esperar a corja do Açude na entrada da cidade. Aos da frente,  deram  instrumentos musicais: cornetas, flautins, tambores, pandeiros e taróis. Sob os gritos dos soldados, e  a mira dos três mosquetões 1914, da dotação do Destacamento,  entraram na cidade tocando um dobrado imaginário e foram depois escorraçados a tiros de sal grosso.
Não se sabe se a idéia foi de Jovina, das pessoas do circo ou dos próprios bichos - quem sabe? -, Cauaçu foi arrasada naquela noite. Com a ajuda dos animais, o elefante, meio trôpego pelo ferimento, mas decidido, e a zebra, à frente, os miseráveis do Açude  tomaram a cidade, prenderam os cabeças e obrigaram os outros a servi-los, entre os quais os bravos militares,  vencidos pelo medo. Uns contam que fizeram mal às donzelas e que Demétrio foi forçado a  empregar  seus talentos de castração  “in anima nobile”, o que ele desmentiu. Tenho depoimentos seguros de que não houve tais abusos.  Aquela gente quis viver suas treze semanas, sem fome e com a dignidade do poder. Depois ajustaram o pacto, dividiram entre si as moedas de ouro encontradas e se dispersaram no mundo. Um deles, leproso, virou fazendeiro grosso no Urucuia. 

Desertado de seus ex-miseráveis, o Arraial do Açude Velho desapareceu do mapa. A gente de Cauaçu, que mudou de nome, continua ordinária até hoje.

domingo, 24 de fevereiro de 2013

VENENO


                    Até que ficasse provada a minha condição de homem de miúdos negócios, e assim se explicasse a Luger 7.65, com seus dois pentes carregados, pude aprender muito da vida com Conselhinho e seus companheiros. Como eu podia saber que andavam catando assassinos entre os romeiros? Soube depois que era o medo do prefeito. Boas não fizera em outra cidade da região: desencaminhara e deixara a chorar no toco a filha de fazendeiro forte. Resultado: suicídio de um lado e o pavor do outro.

                      Na verdade eu tinha mesmo jeito suspeitoso. Uma faringite baixava o tom de voz, fazendo-a mole e vasqueira: eu só falava o necessário. E até mesmo o sestro que eu tinha, e tenho, de esfregar a papila do polegar na segunda falange do indicador da mão direita me fez azar: o delegado achou que o calo era de acionar gatilho. Para encurtar a conversa, meteram-me na cadeia pública.

                    Os três que lá estavam não eram suspeitos. Ao contrário, gente de crimes bem provados, que preferia curtir ali mesmo suas penas, bem longe das grandes penitenciárias, e se ajeitava para isso. Conselhinho, de rosto magro, barbinha branca, olhos cinzentos, merecia o apelido. Logo que entrei, levado pelo soldado Hugo (que depois ficou meu amigo) pôs a mão sobre meu ombro, e começou: “Vou te dar um conselhinho ...”

Conselhinho matara muita gente, e só foi preso anos depois do primeiro crime. O açougueiro comprara-lhe uma vaca para abate, como era costume. Antes de chegar ao matadouro, o animal caiu morto. Conselhinho se negou a indenizar. “Uai, e eu com isso? Quando vendi, estava com saúde. Eu lá tenho culpa de ela ter adoecido no caminhão?”  Conversa de cá, conversa de lá, o açougueiro, que era forte e sangüíneo, quis buscar o seu no bolso de Conselhinho. A lapiana, lambedeira de palmo e meio, apareceu na mão do magrelo como um raio, de tão de repente. Depois de condenado a trinta anos, Conselhinho passou a contar as outras mortes.

- Eu não matava por necessidade. Via um sujeito, não gostava do andado, dava um jeito nele. Nunca me pegaram porque quem é que ia pensar neste seu criado? Sempre dando um conselhinho, sempre ajudando os outros? Pois é, quando tive precisão mesmo de matar, aí me pegaram. A gente, na vida, não pode ter precisão.

                       A mulher levava-lhe, todos os dias, a “melhora” da bóia, que ele repartia com todos. Variava sempre: guisado de abobrinha, cambuquira com carne de porco, cascudos fritos, dobradinha temperada com manjericão e urucum. O arroz sem muito gosto com feijão mulatinho, fornecido à cadeia pela mulher do sargento, ficava palatável com a  “mistura”.

                       Quando reclamei da situação, dizendo que alguém devia estar roubando do governo, pra fornecer comida tão ruim (e assim reforçar a gratidão ao companheiro), recebi logo um “conselhinho”:

                      - Fica quieto. A velha não está trazendo o molho? Depois, quanto é que ganha o sargento? O filho dele é paralítico e meio doido.

                     Entendia muitos assuntos. Para bambeira de coração, veneno de três abelhões:

                   - De mamangaba da legitima, a que dá certo. Bom mesmo é fazer elas ferroar a veia do pescoço, duas do lado esquerdo e uma do lado direito. Quando desincha, o coração fica esperto.

                    Ensinava também como homem deve tomar banho para segurar mulher: com água de chuva bem quente, depois de fervida em capim-de-cheiro.

                    Serafim o mais velho dos outros dois, matara a mulher a pauladas. Nunca disse por que a matara. Mas, pelo jeito ele preferira alegar motivo fútil e comer cadeia grossa, a ficar com a honra ultrajada. Tinha duas filhas que o visitavam no domingo, e traziam sempre um queijo fresco. O outro, o Pereira, era ladrão de cavalos. Quando perguntei por seu crime, respondeu, orgulhoso, “abigeato”.

                    Dormíamos pouco. Durante o tempo de sono de Conselhinho, que, muito picado, vigiávamos. Ele se levantava, contava os barrotes do janelão, conferia os da porta, perguntava muito surpreso a quem estivesse de guarda:

                   - Uai, acordado?

                   Como se não tivesse sido dele mesmo o aviso: muito cuidado com quem dorme sem sossego.