A ladeira é a mesma, e os musgos cinzentos do velho muro, que tanto encantavam Ana Rosa, fazem‑me parar nesta pedra, antes de continuar. Vejo a casa de meu tio. Ela envelheceu; as janelas, fechadas, são como olhos de desbotado azul.
quarta-feira, 4 de novembro de 2015
ANA ROSA CRESCIA ENTRE AS ROMÃS.
A ladeira é a mesma, e os musgos cinzentos do velho muro, que tanto encantavam Ana Rosa, fazem‑me parar nesta pedra, antes de continuar. Vejo a casa de meu tio. Ela envelheceu; as janelas, fechadas, são como olhos de desbotado azul.
AS CONTAS DO ROSÁRIO
Quando o padre chegou, foragido de Mariana, já havia quatro ranchos no que seria muito depois a orgulhosa cidade. Com a batina esfarrapada, e as contas do rosário soltas no bolso, o reverendo curtia o couro da última surra, apanhada no Arraial da Subida.
Era um pouco antes das onze, e o sacerdote buscou no
alforje a garrafa de cachaça. Destampou-a de sua rolha de sabugo e bebeu o gole
alongado. Depois, molhou os dedos e passou-os sobre a equimose da cara, contendo
o gemido que o ardume provocava. Encaminhou a mula para o trilho e perguntou ao
primeiro que viu, um espanhol de botas enfeitadas, se estavam precisando de
padre no lugar.
O espanhol, um andaluz
de nariz mourisco, disse que talvez sim, era questão de perguntar aos outros.
Os outros eram vagabundos, dos que corriam de um a outro lado no continente das
Minas, e se haviam instalado ali, exaustos de campear a sorte.
O padre desselou seu
animal e sentou-se no beiral do rancho maior. Ao lado, no chiqueiro, porcos
magros grunhiam, desorelhados e surus. O espanhol comentou que, esfaimados, os
bichos se haviam comido as orelhas, e se não chegasse o dono com alguma coisa a
dar-lhes, perderiam outros apêndices.
Isso ocorreu no ano de
1802, em janeiro e durante o veranico, porque de regresso a Sevilha com a
restauração de Fernando 7°; o andaluz escreveu suas memórias e narrou o fato
com precisão. É certo que, naqueles tempos, circulavam muitas histórias de
aventuras à moda das narradas pelo capitão Contreras e por Villarroel, e delas
se fazia pouca fé. Mas não havia razões para a mentira desse singuIar
explorador, um dos pouco conhecidos país da entomologia moderna, que foi Lopez
Marulla.
Naqueles anos de
decadência os vagabundos andavam em bandos, e refaziam, em alegre contraponto,
os caminhos de Fernão Dias Paes. Depois do pioneirismo dos bandeirantes, foram
eles os grandes fecundadores das cidades do sertão ocidental. Mas deixemos a
sociologia, inconveniente para a soberba de nossos contemporâneos, e fiquemos
nesta particular comunidade batizada por, alguns como Jacuba, e hoje de
sonoríssimo topônimo.
O padre vinha de
abusados desvios. Como todos os grandes pecadores, começara de baixo,
reforçando o vinho da consagração com as primeiras e brabíssimas aguardentes destiladas
em Acaiaca. Naquele tempo isso bastaria para a excomunhão, mas, bom teólogo, o
sacerdote demonstrou que a consubstanciação não maculava a liturgia e recebeu,
do bem-humorado arcebispo, a penitência de três meses de missa com água
açucarada.
A promiscuidade com as
mulheres do brejinho ocorreu mais tarde, e tudo isso lhe era de certa forma
perdoado, com penitências sempre mansas, até que ele decidiu derreter a pesada
custódia de ouro e prata de sua igreja, e fundir peças retangulares amoedadas
que distribuiu aos pobres. Nisso se deu mal. Recolhido a uma cela disciplinar,
evadiu-se e, depois de singulares feitos numerosos para estas linhas, chegou à
serra da Saudade, que não passa de arrimo geológico do chapadão. No Arraial da
Subida deu-se de engraçado em festa de viola e sanfona. Foi lá que o moeram a
pau, de tal maneira que se sentiu redimido de alguns de seus pecados.
“Em pouco tempo o padre
se tornou o santo daqueles altos planos" – escreve MaruIla em seu relato
quase desconhecido. "Fez do deboche uma espécie de fé nova, e perdoava sem
ouvir as confissões. Sob sua proteção, o arraial cresceu, porque nele havia
lugar para toda a escumalha da província: prostitutas velhas, só de
urgentíssima serventia, desertores do Regimento das Minas, salteadores sem trabalho,
depois de exauridos os aluviões e escasseados os comboios de ouro pelo caminho
geral, bexigosos, baralheiros e domadores de pássaros. "
A cidade é hoje
orgulhosa de seus brasões. Enriquecida na pecuária, escoimou de sua história o
primeiro e turbulento decênio, postergando a fundação para o ano da morte do
padre Inácio de Loiola Pereira, cuja descendência assinalada constitui a solene nobreza
regional.
domingo, 17 de março de 2013
SAL VERMELHO
domingo, 24 de fevereiro de 2013
VENENO
sexta-feira, 24 de agosto de 2012
O DEFUNTO E A VIRGEM
(Crônicas de Minas) - Devo tudo o que sou, e olhem que não sou pouca coisa, ao velho Sabinho, criador de jias, fabricante de gaiolas e mercador de passarinhos, no Brejo Escuro. Pai de Carola, viúvo da benzedeira Gertrude e jagunço enrustido. Sabinho é isso mesmo, sabidozinho. Criava jias, para não dar na vista de seu ofício sério. E muito estranho, não usava revólver, nem faca. Dava outros jeitos. Era criativo. “Tudo que a gente faz, deve ter gosto e arte”. E assim era. Inventou um jeito de cruzar jia-pimenta com jia-boluda, que pesava mais e tinha gosto de cascudo com frango. Suas gaiolas eram cada uma diferente da outra. Fazia gaiola que parecia castelo, tão cheia de torres e outras nove-horas; tinha gaiola com jeito de igreja e até uma – própria pra cardeal cantador – com jeito do Palácio do Catete.
“Cada sujeito deve morrer de um jeito diferente, dependendo da safadeza que fez, e olhe que eu só cuido de canalha. Gente boa, pra mim, é santo”. Armava alçapões para pegar passarinhos do mesmo jeito que montava suas arapucas pra caçar os grambaus. Não sei dizer de onde ele tirou essa palavra para as suas vítimas.
Pressenti, naquele domingo, depois da missa, que ele me colocara na sua lista de grambaus. Foi o jeito que ele me olhou.
Eu estava inocente: dera de bobo e desinteressado, quando Carola abriu o jogo. Estava, como se diz, “a fim”. Esqueci do caso da mulher de Putifar; se tivesse me lembrado, ficaria também “a fim”. Carola, não sendo casada com Putifar, e estando ofendida com minha covardia (foi por medo que não a levei ao rio), deve ter contado o caso para o pai. Pronto: passei à categoria de grambau.
Tratei logo de botar água no visgo de Sabinho. Aleguei negócio urgente na capital, e viajei pro Morro Triste. Arranjei um barraco, botei lá minhas coisas, e mandei um recadeiro positivo avisar a Carola que estava “a fim”. Ela chegou de tardezinha, meio ressabiada, sinal de que eu estava certo. Abri uma garrafa de vinho doce – ela adorava vinho doce – e taquei no copo três comprimidos daqueles dos bons. Ela dormiu, e eu fiquei de olho aceso e ouvido esperto. Foi então que ouvi o barulho do chocalho. Percebi logo: cascavel ensinada. Com jeitinho, e jeitinho eu tenho, agarrei a bicha pelo pescoço, e a enfiei no pote vazio e de boca larga, tampei bem, deixei passar um bom tempo, simulei certos ruídos de prazer. Depois, dei um urro de dor. Foi a tempo de Sabinho olhar pela fresta da janela e me ver arriado no chão. Chamou pela filha, e ela dormia feito pedra. Arrombou a porta – e foi a minha vez. Ficou de costas para ver a filha, e aproveitei. Sendo ele mais maneiro de corpo, puxei o bicho pelo pescoço, e enfiei sua cara na boca do pote, e sujiguei forte. Esperei até que não se mexesse mais e me mandei, deixando para trás o defunto e a virgem.
Com o que aprendi com Sabinho, usando em outros ofícios, cheguei aonde cheguei.
domingo, 5 de agosto de 2012
AS ARMAS
Senhor de todos os respeitos, não o amavam, mas temiam seu mistério. Ali chegara trinta anos passados, com grossos contos de réis, a mulher cabisbaixa e o fordinho que, ao entrar no povoado, exigira turma de enxadeiros para arrumar a légua-e-meia de caminho ruim.
Chegara com carta de recomendação ao major Cerqueira, filho do finado coronel do mesmo nome, e por isso portador de patente menor, já que a Guarda Nacional fora extinta, mas ainda prevaleciam as honras da família. O major Cerqueira vendeu-lhe, pelo dobro do que valia, uma data de terras de capoeira nanica e brejo duro. Isso não o esmorecera; com dinheiro tudo se ajeita, e dinheiro ele tinha.
Conversando pouco, contratava seus camaradas ao preço do mercado, mas oferecia compensações secretas: mais pêlo de carne no caldeirão, litro-e-meio de cachaça aos sábados e remédios para doencinha rasteira, como desarranjo e defluxo. No armário da varanda (camarada seu não entrava da varanda pra dentro) guardava sal-de-glauber, sena, maná, magnésia e elixir paregórico, que dosava criteriosamente.
Nos trinta anos engrossou fortuna, mas não pôde prosperar família. A mulher era de barriga miúda, comentava-se, de boca a ouvido, porque, fora das paredes, ninguém sabia do que se passava entre os dois. Nunca lhe haviam visto os dentes, e, de sua boca, à parte os cumprimentos secos, só se ouviam palavras de precisão. Aquelas que davam ordens, e aquelas que tratavam de negócios. Na cidade, mesmo, seus assuntos eram poucos: comerciava com gente de fora, que lhe vinha comprar garrotes e novilhas de raça, especialista que era em melhorar o sangue de nelores uberabenses. Dizia-se (ninguém provara) que seu segredo era o incesto entre os bichos.
Levantou-se naquela quinta-feira como de seu costume, às cinco, e foi chamar o vaqueiro, mas não o encontrou no curral. Não carecia de procurar a mulher, mortíssima havia meses já – mas foi até o quarto da cozinheira, que tampouco estava. “Ó gente, que passa aqui, que não tem ninguém?” – resmungou. Saiu um pouco. Da varanda via o povoado todo, com suas vinte e oito casas. Era verão alto, e o sol brilhava. Não viu vulto que fosse. Às seis chegariam seus camaradas, e o vaqueiro e a cozinheira (ele já desconfiava) deviam estar pelo retirinho, mais no seguro, acordando de safadezas. Esperaria.
As sete, pela primeira vez na vida, ele mesmo coou café forte, cortou uma fatia de queijo e resolveu chegar ao arraial. O arraial também estava vazio. Deu-lhe então o sério pressentimento de que o haviam achado. Voltou apressado para casa, o coração socando o peito, à espera de uma bala nas costas – mas, nada. Só havia o silêncio. Ao chegar ouviu mugidos horríveis no estábulo. Seu reprodutor de duzentos contos, estava peado e castrado. As outras reses agonizavam devagar, meio sangradas pelo pescoço. Eram eles. Entrou, e viu que não tinha uma só arma
Voltou para o cadeirão da varanda e, pela primeira vez a paisagem ouvia sua gargalhada: “apareçam, se são homens. Venham, seus frouxos.” Calou-se, ao sentir a velha e companheira dor no peito. Mas não enfiou a mão no bolsinho da camisa para apanhar o comprimido. Levantou-se da cadeira, sentou-se na rede, gritou:
- Já que vocês não chegam, vou tirar uma soneca. Quem sabe arranjam coragem?
Respirou fundo, deu uma banana para a paisagem quieta, recostou-se, e agüentou, prazeroso, a dor da angina. Quando, finalmente, rastejaram até a varanda, ele ria de olhos fechados, e dois dedos, o polegar e o indicador, se juntavam, hirtos, no gesto obsceno.
quinta-feira, 19 de julho de 2012
O ILUMINADO
Quando lhe perguntei se era médium, respondeu-me que sim, mas de seu próprio espírito, e desenvolveu a teoria de que, se os espíritos dos mortos conhecem o destino alheio, os espíritos dos vivos também o conhecem. A diferença, me disse, sério, é que a carne atrapalha. Quando um espírito encarnado consegue vencer a barreira do corpo e valer-se dos neurônios apenas como instrumento e não como órgão pensante, disse, qualquer um é iluminado. Esse era o seu caso. Narrou o que eu sofreria na vida (e tem acertado), mas não me disse que teria alegrias. “A alegria deve ser sempre uma surpresa; do contrário, não tem graça”. Como eu estivesse entrando na puberdade, perguntei, sério, como seria a minha vida amorosa, e ele manteve a postura. Só me contou de amores perdidos, de amores frustrados, de desilusões. “A parte boa será surpresa, e os bons videntes não devem tratar de surpresas, entre elas a maior de todas, que é a da hora da morte”.
Vivia de seu ofício, sem constrangimento: “os médicos não cobram? Os sacerdotes não recebem espórtulas? O consolo é um serviço que prestamos, que toma o nosso tempo, e o tempo é inelástico, o tempo de vida é a única propriedade que temos, e toda propriedade deve render, não é mesmo?”
Achei curioso o seu raciocínio, embora o considerasse meio mercenário. Mas, o que cobrava era tão pouco, que me senti explorador de seus serviços.
Sua casa ficava em uma de minhas rotas habituais, que, naquela época, eu percorria de dois em dois meses. Vivia normalmente, com sua mulher, uma morena trintona (ele tinha mais de 50). As duas filhas adolescentes estudavam na cidade, estavam com a avó. Perto corria o Rio Paraopeba, ainda piscoso, e os pescadores, ao passar, sempre deixavam algum peixe, que ele aceitava moderadamente. Não queria peixe para apodrecer. Não pescava, nem trabalhava em coisa alguma. “Meu tempo é pouco para pensar, e sei quando alguém está chegando, e começo a ver sua vida, antes mesmo de ele sentar nessa cadeira aí”. A cadeira, forrada de taboca trançada, era vermelha, cor, que segundo ele, prende a alma ao corpo. “É a cor do sangue, não é?”
Anotei muitas de suas observações sobre o mundo e a vida. Quando o vi pela última vez, estava muito doente, mas não sabia quando iria morrer, embora pressentisse que não demoraria muito. “É a grande surpresa”, me disse, sorrindo, sem falsa resignação. E me deu algumas de suas anotações sobre o jeito de viver em paz, em dois grossos cadernos. Disse-me que aquelas idéias não serviriam apenas para mim. Serviriam para todos os que as lessem, porque as almas são todas iguais, e o que muda é o lado de fora da vida, ou, seja, o mundo.
Surpresa, mesmo, eu tive quando passei pela última vez pela casa de sua viúva, a morena Durva. Ela resolvera viver de sua sensualidade e lascívia, recebendo os clientes que passavam pela estrada. Recusei seus serviços, com elegância, embora tenha sido difícil dispensar aquelas formas e o chamado dos olhos e dos lábios. Mas sempre fui cauteloso.
Um dos projetos que provavelmente nunca cumprirei é o de reescrever as recomendações de Geraldo Osório, porque, ainda que bom de idéias, ele não era forte em ortografia e