Quando o padre chegou,
foragido de Mariana, já havia quatro ranchos no que seria muito depois a orgulhosa
cidade. Com a batina esfarrapada, e as contas do rosário soltas no bolso, o
reverendo curtia o couro da última surra, apanhada no Arraial da Subida.
Era um pouco antes das onze, e o sacerdote buscou no
alforje a garrafa de cachaça. Destampou-a de sua rolha de sabugo e bebeu o gole
alongado. Depois, molhou os dedos e passou-os sobre a equimose da cara, contendo
o gemido que o ardume provocava. Encaminhou a mula para o trilho e perguntou ao
primeiro que viu, um espanhol de botas enfeitadas, se estavam precisando de
padre no lugar.
O espanhol, um andaluz
de nariz mourisco, disse que talvez sim, era questão de perguntar aos outros.
Os outros eram vagabundos, dos que corriam de um a outro lado no continente das
Minas, e se haviam instalado ali, exaustos de campear a sorte.
O padre desselou seu
animal e sentou-se no beiral do rancho maior. Ao lado, no chiqueiro, porcos
magros grunhiam, desorelhados e surus. O espanhol comentou que, esfaimados, os
bichos se haviam comido as orelhas, e se não chegasse o dono com alguma coisa a
dar-lhes, perderiam outros apêndices.
Isso ocorreu no ano de
1802, em janeiro e durante o veranico, porque de regresso a Sevilha com a
restauração de Fernando 7°; o andaluz escreveu suas memórias e narrou o fato
com precisão. É certo que, naqueles tempos, circulavam muitas histórias de
aventuras à moda das narradas pelo capitão Contreras e por Villarroel, e delas
se fazia pouca fé. Mas não havia razões para a mentira desse singuIar
explorador, um dos pouco conhecidos país da entomologia moderna, que foi Lopez
Marulla.
Naqueles anos de
decadência os vagabundos andavam em bandos, e refaziam, em alegre contraponto,
os caminhos de Fernão Dias Paes. Depois do pioneirismo dos bandeirantes, foram
eles os grandes fecundadores das cidades do sertão ocidental. Mas deixemos a
sociologia, inconveniente para a soberba de nossos contemporâneos, e fiquemos
nesta particular comunidade batizada por, alguns como Jacuba, e hoje de
sonoríssimo topônimo.
O padre vinha de
abusados desvios. Como todos os grandes pecadores, começara de baixo,
reforçando o vinho da consagração com as primeiras e brabíssimas aguardentes destiladas
em Acaiaca. Naquele tempo isso bastaria para a excomunhão, mas, bom teólogo, o
sacerdote demonstrou que a consubstanciação não maculava a liturgia e recebeu,
do bem-humorado arcebispo, a penitência de três meses de missa com água
açucarada.
A promiscuidade com as
mulheres do brejinho ocorreu mais tarde, e tudo isso lhe era de certa forma
perdoado, com penitências sempre mansas, até que ele decidiu derreter a pesada
custódia de ouro e prata de sua igreja, e fundir peças retangulares amoedadas
que distribuiu aos pobres. Nisso se deu mal. Recolhido a uma cela disciplinar,
evadiu-se e, depois de singulares feitos numerosos para estas linhas, chegou à
serra da Saudade, que não passa de arrimo geológico do chapadão. No Arraial da
Subida deu-se de engraçado em festa de viola e sanfona. Foi lá que o moeram a
pau, de tal maneira que se sentiu redimido de alguns de seus pecados.
“Em pouco tempo o padre
se tornou o santo daqueles altos planos" – escreve MaruIla em seu relato
quase desconhecido. "Fez do deboche uma espécie de fé nova, e perdoava sem
ouvir as confissões. Sob sua proteção, o arraial cresceu, porque nele havia
lugar para toda a escumalha da província: prostitutas velhas, só de
urgentíssima serventia, desertores do Regimento das Minas, salteadores sem trabalho,
depois de exauridos os aluviões e escasseados os comboios de ouro pelo caminho
geral, bexigosos, baralheiros e domadores de pássaros. "
A cidade é hoje
orgulhosa de seus brasões. Enriquecida na pecuária, escoimou de sua história o
primeiro e turbulento decênio, postergando a fundação para o ano da morte do
padre Inácio de Loiola Pereira, cuja descendência assinalada constitui a solene nobreza
regional.
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