quarta-feira, 4 de novembro de 2015

ANA ROSA CRESCIA ENTRE AS ROMÃS.




A ladeira  é a mesma, e os musgos  cinzentos do velho muro, que tanto encantavam Ana Rosa, fazem‑me parar nesta pedra, antes de continuar. Vejo a casa de meu tio. Ela envelheceu; as janelas, fechadas, são como olhos de desbotado azul.
Nestes quarenta anos muita coisa mudou: os turistas sobem a ladeira, espantam as avencas que sobrevivem entre as pedras da beira. Antes, quando, nas férias, voltávamos do campinho, onde buscávamos as gabirobas que apertavam na língua, a ladeira era menor. Eu corria atrás de Ana Rosa. Suas pernas eram rosadas e sardentas.
Como estará meu tio ? Naquele tempo ele iniciava a sua amizade com os fantasmas. Vinham, em grupos diferentes, em noites sem lua, jogar gamão e contar as safadezas dos tempos do Conde de Assumar.
Meu tio, às vezes, encontrava um e outro, quando voltava do correio. Parava, costumava sentar‑se à beira das ruas, em qualquer soleira de porta, e conversar longamente com os mortos; por isso o aposentaram ‑ e meu tio, com o ócio, dava mais de seu tempo a estes amigos, deixou os outros ‑ talvez os tempos que chegavam, com automóveis e o rádio, desencantassem‑no. Ele prefe­ria os mortos, também assustados, que temiam ser agarrados pela máquina fotográfica dos poucos turistas de então e, assim, serem devolvidos à vida, à monotonia das repartições públicas.
      Estou diante da porta. Um dia, nas férias de 36(ou 37) Ana Rosa me disse, à despedida: - Quero ir com você. Para onde você for. Meu tio, os olhos azuis e quietos, nada disse. Entre as férias, o tempo de escola parecia longo.

      Às vezes, alguém vinha de Ouro Preto, trazia‑me um envelope com passarinhos coloridos desenhados (sempre os mesmos estranhos rouxinóis bicando um coração de vivo vermelho). Dentro, a mensagem de Ana Rosa : fiapos de musgo verde, raminhos de avenca.
Ana Rosa crescia entre as romãs. Ao fazer quinze anos, ficamos noivos. Meu tio só disse "hum... hum..." quando meu pai lhe falou de nosso desejo de casar e explicou o pedido cedo:
‑ Posso morrer a qualquer hora. Queria ter a promessa de que viverão juntos.
A porta está encostada, como sempre. A velha Lavínia estará agora no fogão do quintal, fazendo o sabão da semana ou catando gravetos. É cedo ainda, cheguei bem cedo. Macedo seguiu viagem para Mariana, deixou‑me ao pé da ladeira : o volks não a escalaria.
Lavínia, morta minha tia, abandonou o sonho de casar‑se: veio cuidar de Ana Rosa. Os seios, virgens e vazios, não lhe serviam para alimentar a recém‑nascida. Mamãe viu‑a certa manhã, com Ana Rosa no colo, feliz. A menina sugava o mamilo infecunda­do. Lavínia tinha os olhos cerrados na substituída alegria.
Em agosto de 1942 ‑ que terrível agosto ! - tivemos as férias da guerra. Com o povo revoltado pelo afundamento dos navios brasileiros, fecharam‑se as escolas. Ana Rosa estava alegre, mostrou‑me as primeiras peças do enxoval que bordava. Seus seios eram rijos e belos.
Entro na casa. Ouço, do quarto de meu tio, as vozes sussuradas de seus convidados mortos. Na certa, a conversa demorou, não quiseram voltar bem tarde para o cemitério, cochilaram nas cadeiras de palhinha ouvindo meu tio mentir‑lhes. Velho vício este de meu tio: contentar a curiosidade dos mortos com estórias que inventava sobre os vivos.
Alí está o quarto de Ana Rosa. Eu voltava, naquele agosto, de Passagem de Mariana. Fora, com três outros, buscar tesouros. Na vol­ta, apanhei os galhos de quaresmeira florida para oferecer a Ana Rosa. Meu tio não estava. Lavínia corria, ladeira abaixo aos gritos:
‑ Ana Rosa dormiu de repente ! dormiu de repente e não quer acordar.
Encontrei‑a deitada sobre a cama. Desabotoei os sapatos e levei a mão ao seu seio esquerdo. Era a primeira carícia, tantas vezes sonhada. O coração já não batia, mas o resto do calor que animava a sua pele fina ficou‑me na mão, até hoje, como pássaro obediente.

Junto, na mesinha, o bastidor, com a peça de linho que Ana Rosa bordava. Apanhei a tesourinha e cortei‑lhe a madeixa de cabelos dourados. Nas orelhas, Ana Rosa trazia os brincos de ouro de Sabará.
Escondi a madeixa na fenda, junto à janela. Nunca mais voltei ao quarto.
Empurro, agora, docemente, a porta. O ranger é fino, doem-­me os nervos. O quarto está como estava: a cama, que Lavínia arrumou na manhã do sepultamento, cobre‑se da poeira do tempo.
Voltávamos do cemitério. Meu tio, depois de percorrer as tumbas amigas, gritou do portão:
‑ Mulher! Não deixe Ana Rosa sair no sereno ! Não  deixe ela  ficar resfriada !
Ana Rosa dormia com minha tia: a pétala, desfolhada, vol­tava à dália morta.
Há um suave perfume neste quarto. As cortinas, cerradas, estão corroídas pelas traças.
Levo a mão à fenda. Ali estão os cabelos de Ana Rosa. Retiro‑os com cuidado, volto à sala antiga. Da janela, fechada,  mas empenada, projeta‑se um sabre de luz. Sopro o pó dos cabelos e vejo‑os na claridade. Estão encanecidos ‑ como os meus próprios cabelos.
O rumor de meus passos assusta os mortos no quarto imenso de meu tio. Ouço‑os, levantando‑se, e escuto a voz de meu tio, que os tranquiliza:
      ‑ Não é nada. Ana Rosa deve ter ido à janela. Vai sempre à janela, à espera do primo que se foi e nunca mais voltou.


AS CONTAS DO ROSÁRIO




Quando o padre chegou, foragido de Mariana, já havia quatro ran­chos no que seria muito depois a or­gulhosa cidade. Com a batina esfarrapada, e as contas do rosário soltas no bolso, o reverendo curtia o couro da última surra, apanhada no Arraial da Subida.


Era um pouco antes das onze, e o sacerdote buscou no alforje a garrafa de cachaça. Destampou-a de sua rolha de sabugo e bebeu o gole alongado. Depois, molhou os dedos e passou-os sobre a equimose da cara, contendo o gemido que o ardume provocava. Encaminhou a mula para o trilho e perguntou ao primeiro que viu, um espanhol de botas enfeitadas, se estavam precisando de padre no lugar.


O espanhol, um andaluz de nariz mourisco, disse que talvez sim, era questão de perguntar aos outros. Os outros eram vagabundos, dos que corriam de um a outro lado no continente das Minas, e se haviam instalado ali, exaustos de campear a sorte.


O padre desselou seu animal e sentou-se no beiral do rancho maior. Ao lado, no chiqueiro, por­cos magros grunhiam, de­sorelhados e surus. O espanhol comentou que, esfaimados, os bichos se haviam comido as orelhas, e se não chegasse o dono com alguma coisa a dar-lhes, perderiam outros apêndices.


Isso ocorreu no ano de 1802, em janeiro e durante o veranico, porque de regresso a Sevilha com a restauração de Fernando 7°; o andaluz escreveu suas memórias e narrou o fato com precisão. É certo que, naqueles tempos, circulavam muitas histórias de aventuras à moda das narradas pelo capitão Contreras e por Villarroel, e delas se fazia pouca fé. Mas não havia razões para a mentira desse sin­guIar explorador, um dos pouco conhecidos país da entomologia moderna, que foi Lopez Marulla.


Naqueles anos de decadência os vagabundos andavam em bandos, e refaziam, em alegre contraponto, os caminhos de Fernão Dias Paes. Depois do pioneirismo dos bandeirantes, foram eles os grandes fecundadores das cidades do sertão ocidental. Mas deixemos a sociologia, inconveniente para a soberba de nossos contemporâneos, e fiquemos nesta particular comunidade batizada por, alguns como Jacuba, e hoje de sonoríssimo topônimo.


O padre vinha de abusados desvios. Como todos os grandes pe­cadores, começara de baixo, reforçando o vinho da consagração com as primeiras e brabíssimas aguardentes destiladas em Acaiaca. Naquele tempo isso bastaria para a excomunhão, mas, bom teólogo, o sacerdote demonstrou que a consubstanciação não maculava a liturgia e recebeu, do bem-humorado arcebispo, a penitência de três meses de missa com água açucarada.


A promiscuidade com as mulheres do brejinho ocorreu mais tarde, e tudo isso lhe era de certa forma perdoado, com penitências sempre mansas, até que ele decidiu derreter a pesada custódia de ouro e prata de sua igreja, e fundir peças retangulares amoedadas que distribuiu aos pobres. Nisso se deu mal. Recolhido a uma cela disciplinar, evadiu-se e, depois de sin­gulares feitos numerosos para estas linhas, chegou à serra da Saudade, que não passa de arrimo geológico do chapadão. No Arraial da Subida deu-se de engraçado em festa de viola e sanfona. Foi lá que o moeram a pau, de tal maneira que se sentiu redimido de alguns de seus pecados.


“Em pouco tempo o padre se tornou o santo daqueles altos planos" – escreve MaruIla em seu relato quase desconhecido. "Fez do deboche uma espécie de fé nova, e perdoava sem ouvir as confissões. Sob sua proteção, o arraial cresceu, porque nele havia lugar para toda a escumalha da província: prostitutas velhas, só de urgentíssima serventia, desertores do Regimento das Minas, salteadores sem trabalho, depois de exauridos os aluviões e escasseados os comboios de ouro pelo caminho geral, bexigosos, baralheiros e domadores de pássaros. "


A cidade é hoje orgulhosa de seus brasões. Enriquecida na pecuária, escoimou de sua história o primeiro e turbulento decênio, postergando a fundação para o ano da morte do padre Inácio de Loiola Pereira, cuja descendência assinalada constitui a solene nobreza re­gional.

domingo, 17 de março de 2013

SAL VERMELHO


O que vou contar ocorreu entre o dia 27 de março e 26 de junho de 1928. Durou 13 semanas exatas, ou 91 dias, de acordo com a memória de Demétrio Alexandrino Queirós, mestre em capação variada (de frango a elefante) e maçom renegado, inscrito no Livro Negro por desvios singulares e bem humanos.
Não fosse o povo de Cauaçu reles e egoísta, gente ordinária e pedan­te, devotada aos pecados sem prazer  - visto que são perdoados os pecados que alegram os sentidos e podem ser divididos em sua prática, como os de cama e mesa; e nefandos os do êxtase solitário, como os da avareza, da soberba e do onanismo -   não guardaria na memória a narração de Demétrio, uma das estórias exemplares    do sertão alto.
Convém gastar mais um pouco de tempo com a geografia física e moral de Cauaçu, para o bom en­tendimento do castigo. Ilha de terras roxas e úmidas, tão molhadas que os raríssimos calhaus chegavam a suar em pleno verão, o município era também o único ponto, em toda a comprida chapada, de chuva regular. Chuva fina, como se São Pedro tivesse ins­talado um chuveiro maneiro em cima daquele pedaço. Com água de cima e água de baixo, nascia ali o Cauaçu que, ao contrário de todos os rios, não crescia: descendo rumo ao Carinhanha entrava em terras sequíssimas e esponjosas, e acabava por desaparecer, reduzido a mero rego de palmo e meio, no Açude Velho, valhacouto dos restolhos humanos de toda aquela vasta e outrora esquecida zona.
Cauaçu era cidade dos paióis sempre cheios, de porcos de 15 arrobas,  arroz de soca, de três cortes e espigada cheia, e gente que chegava aos 90, cavalgando em pêlo e sem dor nas cadeiras. Mas – e isso era o que mais espantava os raros visitantes – não havia, no mundo inteiro, canalhas tão bem acabados. Primeiro, eram de especial avareza. Desde tempos muito velhos, juntavam ali suas moedas de ouro. Fazia-as mestre Cirilo, filho e neto de outros Cirilos, e punha em cada uma delas a efígie do cliente, cercado de seu nome e, no anverso, as armas de Cauaçu: pé-de-meia cheio e a frase antiga: "Vintém poupado, vintém ganho.” Tais moedas não circulavam: estava convencionado, e havia muito, que era a maior desonra desfazer-se de uma só delas. Cirilo não só as marcava, bem como as numerava e delas mantinha registro.
O arraial de Açude Velho, depósito da ralé, fora fundado por Negra Jovina, amásia do beato Mané Consola, morto por uma patrulha da Força Pública, em episódio que não cabe aqui, e fica para ser contado depois. Jovina  juntou ali cegos, leprosos, sifilíticas, aleijadas, abobados. Deus sabe como conseguia mantê-los, cozinhando raízes do mato, fazendo sopa de ervas do brejo e, segundo injuriosa gozação do pessoal de Cauaçu, assando pererecas e gafanhotos.
No início de março de 36 passou pela estrada, ao lado do Açude, um circo mambembe, e houve o acidente. Uma das moças, grávida de meses, caiu do cavalo,  abortou. Teve hemorragia brutal, ia morrer, e a salvou Jovina com benzedura, sal vermelho e  chá de osso de capivara. O dono do circo ficou conhecendo a história do arraial desprezado. Houve então o convite: aparecessem na Quinta-feira, em Cauaçu – a primeira função do circo seria apenas  para eles. No sábado seguinte, o espetáculo começaria oficialmente.
É fácil saber como reagiu aquela gente ordinária de Cauaçu, desviada dos mandamentos de Cristo e entregue à volúpia do ouro, quando soube do descabido privilégio. Encomendaram a De­métrio a capação do elefante, que dormia ao lado do circo, descuidado. Deram-lhe dose brutal de clorofórmio, e o bicho arriou. Demétrio fez o serviço, suturou o corte e passou creolina. Depois mandaram o cabo e os quatro soldados do Destacamento esperar a corja do Açude na entrada da cidade. Aos da frente,  deram  instrumentos musicais: cornetas, flautins, tambores, pandeiros e taróis. Sob os gritos dos soldados, e  a mira dos três mosquetões 1914, da dotação do Destacamento,  entraram na cidade tocando um dobrado imaginário e foram depois escorraçados a tiros de sal grosso.
Não se sabe se a idéia foi de Jovina, das pessoas do circo ou dos próprios bichos - quem sabe? -, Cauaçu foi arrasada naquela noite. Com a ajuda dos animais, o elefante, meio trôpego pelo ferimento, mas decidido, e a zebra, à frente, os miseráveis do Açude  tomaram a cidade, prenderam os cabeças e obrigaram os outros a servi-los, entre os quais os bravos militares,  vencidos pelo medo. Uns contam que fizeram mal às donzelas e que Demétrio foi forçado a  empregar  seus talentos de castração  “in anima nobile”, o que ele desmentiu. Tenho depoimentos seguros de que não houve tais abusos.  Aquela gente quis viver suas treze semanas, sem fome e com a dignidade do poder. Depois ajustaram o pacto, dividiram entre si as moedas de ouro encontradas e se dispersaram no mundo. Um deles, leproso, virou fazendeiro grosso no Urucuia. 

Desertado de seus ex-miseráveis, o Arraial do Açude Velho desapareceu do mapa. A gente de Cauaçu, que mudou de nome, continua ordinária até hoje.

domingo, 24 de fevereiro de 2013

VENENO


                    Até que ficasse provada a minha condição de homem de miúdos negócios, e assim se explicasse a Luger 7.65, com seus dois pentes carregados, pude aprender muito da vida com Conselhinho e seus companheiros. Como eu podia saber que andavam catando assassinos entre os romeiros? Soube depois que era o medo do prefeito. Boas não fizera em outra cidade da região: desencaminhara e deixara a chorar no toco a filha de fazendeiro forte. Resultado: suicídio de um lado e o pavor do outro.

                      Na verdade eu tinha mesmo jeito suspeitoso. Uma faringite baixava o tom de voz, fazendo-a mole e vasqueira: eu só falava o necessário. E até mesmo o sestro que eu tinha, e tenho, de esfregar a papila do polegar na segunda falange do indicador da mão direita me fez azar: o delegado achou que o calo era de acionar gatilho. Para encurtar a conversa, meteram-me na cadeia pública.

                    Os três que lá estavam não eram suspeitos. Ao contrário, gente de crimes bem provados, que preferia curtir ali mesmo suas penas, bem longe das grandes penitenciárias, e se ajeitava para isso. Conselhinho, de rosto magro, barbinha branca, olhos cinzentos, merecia o apelido. Logo que entrei, levado pelo soldado Hugo (que depois ficou meu amigo) pôs a mão sobre meu ombro, e começou: “Vou te dar um conselhinho ...”

Conselhinho matara muita gente, e só foi preso anos depois do primeiro crime. O açougueiro comprara-lhe uma vaca para abate, como era costume. Antes de chegar ao matadouro, o animal caiu morto. Conselhinho se negou a indenizar. “Uai, e eu com isso? Quando vendi, estava com saúde. Eu lá tenho culpa de ela ter adoecido no caminhão?”  Conversa de cá, conversa de lá, o açougueiro, que era forte e sangüíneo, quis buscar o seu no bolso de Conselhinho. A lapiana, lambedeira de palmo e meio, apareceu na mão do magrelo como um raio, de tão de repente. Depois de condenado a trinta anos, Conselhinho passou a contar as outras mortes.

- Eu não matava por necessidade. Via um sujeito, não gostava do andado, dava um jeito nele. Nunca me pegaram porque quem é que ia pensar neste seu criado? Sempre dando um conselhinho, sempre ajudando os outros? Pois é, quando tive precisão mesmo de matar, aí me pegaram. A gente, na vida, não pode ter precisão.

                       A mulher levava-lhe, todos os dias, a “melhora” da bóia, que ele repartia com todos. Variava sempre: guisado de abobrinha, cambuquira com carne de porco, cascudos fritos, dobradinha temperada com manjericão e urucum. O arroz sem muito gosto com feijão mulatinho, fornecido à cadeia pela mulher do sargento, ficava palatável com a  “mistura”.

                       Quando reclamei da situação, dizendo que alguém devia estar roubando do governo, pra fornecer comida tão ruim (e assim reforçar a gratidão ao companheiro), recebi logo um “conselhinho”:

                      - Fica quieto. A velha não está trazendo o molho? Depois, quanto é que ganha o sargento? O filho dele é paralítico e meio doido.

                     Entendia muitos assuntos. Para bambeira de coração, veneno de três abelhões:

                   - De mamangaba da legitima, a que dá certo. Bom mesmo é fazer elas ferroar a veia do pescoço, duas do lado esquerdo e uma do lado direito. Quando desincha, o coração fica esperto.

                    Ensinava também como homem deve tomar banho para segurar mulher: com água de chuva bem quente, depois de fervida em capim-de-cheiro.

                    Serafim o mais velho dos outros dois, matara a mulher a pauladas. Nunca disse por que a matara. Mas, pelo jeito ele preferira alegar motivo fútil e comer cadeia grossa, a ficar com a honra ultrajada. Tinha duas filhas que o visitavam no domingo, e traziam sempre um queijo fresco. O outro, o Pereira, era ladrão de cavalos. Quando perguntei por seu crime, respondeu, orgulhoso, “abigeato”.

                    Dormíamos pouco. Durante o tempo de sono de Conselhinho, que, muito picado, vigiávamos. Ele se levantava, contava os barrotes do janelão, conferia os da porta, perguntava muito surpreso a quem estivesse de guarda:

                   - Uai, acordado?

                   Como se não tivesse sido dele mesmo o aviso: muito cuidado com quem dorme sem sossego.



sexta-feira, 24 de agosto de 2012

O DEFUNTO E A VIRGEM


(Crônicas de Minas) - Devo tudo o que sou, e olhem que não sou pouca coisa, ao velho Sabinho, criador de jias, fabricante de gaiolas e mercador de passarinhos, no Brejo Escuro. Pai de Carola, viúvo da benzedeira Gertrude e jagunço enrustido. Sabinho é isso mesmo, sabidozinho. Criava jias, para não dar na vista de seu ofício sério. E muito estranho, não usava revólver, nem faca. Dava outros jeitos. Era criativo. “Tudo que a gente faz, deve ter gosto e arte”. E assim era. Inventou um jeito de cruzar jia-pimenta com jia-boluda, que pesava mais e tinha gosto de cascudo com frango. Suas gaiolas eram cada uma diferente da outra. Fazia gaiola que parecia castelo, tão cheia de torres e outras nove-horas; tinha gaiola com jeito de igreja e até uma – própria pra cardeal cantador – com jeito do Palácio do Catete.

“Cada sujeito deve morrer de um jeito diferente, dependendo da safadeza que fez, e olhe que eu só cuido de canalha. Gente boa, pra mim, é santo”. Armava alçapões para pegar passarinhos do mesmo jeito que montava suas arapucas pra caçar os grambaus. Não sei dizer de onde ele tirou essa palavra para as suas vítimas.

Pressenti, naquele domingo, depois da missa, que ele me colocara na sua lista de grambaus. Foi o jeito que ele me olhou.

Eu estava inocente: dera de bobo e desinteressado, quando Carola abriu o jogo. Estava, como se diz, “a fim”. Esqueci do caso da mulher de Putifar; se tivesse me lembrado, ficaria também “a fim”. Carola, não sendo casada com Putifar, e estando ofendida com minha covardia (foi por medo que não a levei ao rio), deve ter contado o caso para o pai. Pronto: passei à categoria de grambau.

Tratei logo de botar água no visgo de Sabinho. Aleguei negócio urgente na capital, e viajei pro Morro Triste. Arranjei um barraco, botei lá minhas coisas, e mandei um recadeiro positivo avisar a Carola que estava “a fim”. Ela chegou de tardezinha, meio ressabiada, sinal de que eu estava certo. Abri uma garrafa de vinho doce – ela adorava vinho doce – e taquei no copo três comprimidos daqueles dos bons. Ela dormiu, e eu fiquei de olho aceso e ouvido esperto. Foi então que ouvi o barulho do chocalho. Percebi logo: cascavel ensinada. Com jeitinho, e jeitinho eu tenho, agarrei a bicha pelo pescoço, e a enfiei no pote vazio e de boca larga, tampei bem, deixei passar um bom tempo, simulei certos ruídos de prazer. Depois, dei um urro de dor. Foi a tempo de Sabinho olhar pela fresta da janela e me ver arriado no chão. Chamou pela filha, e ela dormia feito pedra. Arrombou a porta – e foi a minha vez. Ficou de costas para ver a filha, e aproveitei. Sendo ele mais maneiro de corpo, puxei o bicho pelo pescoço, e enfiei sua cara na boca do pote, e sujiguei forte. Esperei até que não se mexesse mais e me mandei, deixando para trás o defunto e a virgem.

Com o que aprendi com Sabinho, usando em outros ofícios, cheguei aonde cheguei.

domingo, 5 de agosto de 2012

AS ARMAS



Senhor de todos os respeitos, não o amavam, mas temiam seu mistério. Ali chegara trinta anos passados, com grossos contos de réis, a mulher cabisbaixa e o fordinho que, ao entrar no povoado, exigira turma de enxadeiros para arrumar a légua-e-meia de caminho ruim.

Chegara com carta de recomendação ao major Cerqueira, filho do finado coronel do mesmo nome, e por isso portador de patente menor, já que a Guarda Nacional fora extinta, mas ainda prevaleciam as honras da família. O major Cerqueira vendeu-lhe, pelo dobro do que valia, uma data de terras de capoeira nanica e brejo duro. Isso não o esmorecera; com dinheiro tudo se ajeita, e dinheiro ele tinha.

Conversando pouco, contratava seus camaradas ao preço do mercado, mas oferecia compensações secretas: mais pêlo de carne no caldeirão, litro-e-meio de cachaça aos sábados e remédios para doencinha rasteira, como desarranjo e defluxo. No armário da varanda (camarada seu não entrava da varanda pra dentro) guardava sal-de-glauber, sena, maná, magnésia e elixir paregórico, que dosava criteriosamente.

Nos trinta anos engrossou fortuna, mas não pôde prosperar família. A mulher era de barriga miúda, comentava-se, de boca a ouvido, porque, fora das paredes, ninguém sabia do que se passava entre os dois. Nunca lhe haviam visto os dentes, e, de sua boca, à parte os cumprimentos secos, só se ouviam palavras de precisão. Aquelas que davam ordens, e aquelas que tratavam de negócios. Na cidade, mesmo, seus assuntos eram poucos: comerciava com gente de fora, que lhe vinha comprar garrotes e novilhas de raça, especialista que era em melhorar o sangue de nelores uberabenses. Dizia-se (ninguém provara) que seu segredo era o incesto entre os bichos.

Levantou-se naquela quinta-feira como de seu costume, às cinco, e foi chamar o vaqueiro, mas não o encontrou no curral. Não carecia de procurar a mulher, mortíssima havia meses já – mas foi até o quarto da cozinheira, que tampouco estava. “Ó gente, que passa aqui, que não tem ninguém?” – resmungou. Saiu um pouco. Da varanda via o povoado todo, com suas vinte e oito casas. Era verão alto, e o sol brilhava. Não viu vulto que fosse. Às seis chegariam seus camaradas, e o vaqueiro e a cozinheira (ele já desconfiava) deviam estar pelo retirinho, mais no seguro, acordando de safadezas. Esperaria.

As sete, pela primeira vez na vida, ele mesmo coou café forte, cortou uma fatia de queijo e resolveu chegar ao arraial. O arraial também estava vazio. Deu-lhe então o sério pressentimento de que o haviam achado. Voltou apressado para casa, o coração socando o peito, à espera de uma bala nas costas – mas, nada. Só havia o silêncio. Ao chegar ouviu mugidos horríveis no estábulo. Seu reprodutor de duzentos contos, estava peado e castrado. As outras reses agonizavam devagar, meio sangradas pelo pescoço. Eram eles. Entrou, e viu que não tinha uma só arma em casa. Mas não iria pedir misericórdia. Já sabia o que ocorrera: saídos da cadeia, os três se juntaram para vir atrás dele, que nunca cumprira nada do prometido – nem mesmo olhar pela mulher do Santos, que estava grávida, nem mesmo pagar a operação do pai de Durvalino. Tinham esvaziado o arraial, indo de casa em casa durante a noite – e como ninguém ali o estimava, fora fácil mandar todos para assistir, dos altos, ao seu fim. Queriam matá-lo de medo. Era o que ele faria se estivesse no lugar deles – e um deles estivesse em seu lugar. Mas estavam lidando com lacrau. De medo, não. De bala sim, ou , quem sabe, talvez. Foi para a varanda, sentou-se na cadeira alta, tirou a camisa e ofereceu o peito magro como alvo. Mas não houve tiro. Ouviu barulhos no fundo, não se moveu. Com fome, o sol a pino, levantou-se devagar, foi à cozinha, cortou um pedaço de charque, chamuscou-o no borralho, comeu. Tirou, com a cuia, água do pote e levou-a à boca: estava amarga, purgativa. Não bebeu. Ao meio dia os passarinhos sempre cantavam, e estavam mudos. Haviam posto arsênico no alpiste.

Voltou para o cadeirão da varanda e, pela primeira vez a paisagem ouvia sua gargalhada: “apareçam, se são homens. Venham, seus frouxos.” Calou-se, ao sentir a velha e companheira dor no peito. Mas não enfiou a mão no bolsinho da camisa para apanhar o comprimido. Levantou-se da cadeira, sentou-se na rede, gritou:

- Já que vocês não chegam, vou tirar uma soneca. Quem sabe arranjam coragem?

Respirou fundo, deu uma banana para a paisagem quieta, recostou-se, e agüentou, prazeroso, a dor da angina. Quando, finalmente, rastejaram até a varanda, ele ria de olhos fechados, e dois dedos, o polegar e o indicador, se juntavam, hirtos, no gesto obsceno.

quinta-feira, 19 de julho de 2012

O ILUMINADO


Quando lhe perguntei se era médium, respondeu-me que sim, mas de seu próprio espírito, e desenvolveu a teoria de que, se os espíritos dos mortos conhecem o destino alheio, os espíritos dos vivos também o conhecem. A diferença, me disse, sério, é que a carne atrapalha. Quando um espírito encarnado consegue vencer a barreira do corpo e valer-se dos neurônios apenas como instrumento e não como órgão pensante, disse, qualquer um é iluminado. Esse era o seu caso. Narrou o que eu sofreria na vida (e tem acertado), mas não me disse que teria alegrias. “A alegria deve ser sempre uma surpresa; do contrário, não tem graça”. Como eu estivesse entrando na puberdade, perguntei, sério, como seria a minha vida amorosa, e ele manteve a postura. Só me contou de amores perdidos, de amores frustrados, de desilusões. “A parte boa será surpresa, e os bons videntes não devem tratar de surpresas, entre elas a maior de todas, que é a da hora da morte”.

Vivia de seu ofício, sem constrangimento: “os médicos não cobram? Os sacerdotes não recebem espórtulas? O consolo é um serviço que prestamos, que toma o nosso tempo, e o tempo é inelástico, o tempo de vida é a única propriedade que temos, e toda propriedade deve render, não é mesmo?”

Achei curioso o seu raciocínio, embora o considerasse meio mercenário. Mas, o que cobrava era tão pouco, que me senti explorador de seus serviços.

Sua casa ficava em uma de minhas rotas habituais, que, naquela época, eu percorria de dois em dois meses. Vivia normalmente, com sua mulher, uma morena trintona (ele tinha mais de 50). As duas filhas adolescentes estudavam na cidade, estavam com a avó. Perto corria o Rio Paraopeba, ainda piscoso, e os pescadores, ao passar, sempre deixavam algum peixe, que ele aceitava moderadamente. Não queria peixe para apodrecer. Não pescava, nem trabalhava em coisa alguma. “Meu tempo é pouco para pensar, e sei quando alguém está chegando, e começo a ver sua vida, antes mesmo de ele sentar nessa cadeira aí”. A cadeira, forrada de taboca trançada, era vermelha, cor, que segundo ele, prende a alma ao corpo. É a cor do sangue, não é?”

Anotei muitas de suas observações sobre o mundo e a vida. Quando o vi pela última vez, estava muito doente, mas não sabia quando iria morrer, embora pressentisse que não demoraria muito. “É a grande surpresa”, me disse, sorrindo, sem falsa resignação. E me deu algumas de suas anotações sobre o jeito de viver em paz, em dois grossos cadernos. Disse-me que aquelas idéias não serviriam apenas para mim. Serviriam para todos os que as lessem, porque as almas são todas iguais, e o que muda é o lado de fora da vida, ou, seja, o mundo.

Surpresa, mesmo, eu tive quando passei pela última vez pela casa de sua viúva, a morena Durva. Ela resolvera viver de sua sensualidade e lascívia, recebendo os clientes que passavam pela estrada. Recusei seus serviços, com elegância, embora tenha sido difícil dispensar aquelas formas e o chamado dos olhos e dos lábios. Mas sempre fui cauteloso.

Um dos projetos que provavelmente nunca cumprirei é o de reescrever as recomendações de Geraldo Osório, porque, ainda que bom de idéias, ele não era forte em ortografia e em sintaxe. Afinal, não podemos exigir tudo dos espíritos, encapsulados neste nosso corpo imperfeito e perecível.