terça-feira, 17 de maio de 2011

COISA DE HOMEM

Eu acredito na Providência Divina. Deus, em sua bondade infinita, reserva uma parte de sua misericórdia para atender a pequenos pilantras, como éramos, o Élcio Catarinense e eu mesmo, que me apresento como Eduardo, vulgo Quina de Nove, de sobrenome pessoal e secreto. Quem vive de expedientes, como vivíamos – e eu ainda vivo, já que “fecharam” o meu parceiro  -  não pode ter escolha, pega o que aparece. E o que tinha aparecido era o baralho de cartomante, aquele cheio de figuras esquisitas, espadas, coroas e caveiras. Com minha cara de menino, parecia impor  respeito. Élcio servia de agá: começou a espalhar na cidade que tinha um moleque na praça, com o baralho de sorte, adivinhando tudo. Primeiro foi uma senhora bem velhinha, que chegou, ressabiada. Olhei-a firme, quase podia contar as rugas. E, fechando os olhos, disse a Deus que estávamos os dois vagabundos, mas de bom coração,  um dia e meio passando a água sem pão, e merecedores de sua bondade. Tínhamos muito tempo pela frente, para mudar de vida, mas era preciso comer, porque senão o desespero podia nos aconselhar mal. Por que ele iria perder duas ovelhas famintas e desgarradas da boa sociedade? Desse uma mão, pelo amor dele mesmo.  Depois pedi à dona que embaralhasse e partisse as cartas, enquanto mantive os olhos fechados, firme com Nosso Senhor. Como não entendia nada, espalhei as cartas, de sete em sete, e disse, de cara, à velhinha, que o grande amor de sua vida acabara de bater com as dez. Ela ficou espantada, não quis ouvir mais nada, deixou a nota de cinco mil réis, meus honorários fixos e inegociáveis, sobre o caixote que servia de mesa e saiu quase correndo.
              O sujeito que veio em seguida, fazendeirão de cara gorda e bigode grosso, quis dizer o que o preocupava e eu cortei, logo: “Só leio as cartas se o senhor não falar nada. Quem vai falar sou eu”. E falei o que me veio à cabeça: “o negócio vai dar certo. Depois de amanhã, o senhor recebe a escritura”.  O fazendeiro perguntou como é que eu sabia que ele estava comprando a fazenda, e eu disse que eram as cartas. Inventei que o sete de espadas, daquelas espadas grandonas e verdes, significava negócio feito, e faturei vinte mangos.
                  E assim passou o dia. Quando chegou a tarde, contamos a féria: trezentos e cinco paus, no tempo de salário mínimo de 160 mil réis. Resolvemos dar o fora, e alugamos duas  bicicletas, para ir ao lugar das raparigas, do outro lado do rio. A idéia era a de, depois da devoção às meninas, pegar o noturno, que passava às dez e meia, e largar as bicicletas por lá – mas não deu. Quase todos os clientes  vieram atrás de nós: a velhinha veio dizer que seu antigo  namorado fechara o paletó, aos oitenta e dois, no Rio: telegrama da viúva, no caso sua prima, confirmara que ele morrera de madrugada. Do fazendeiro não tive notícias logo, mas sei que o negócio se fez. Ganhamos mais algum do farmacêutico, que se livrara do fiscal do imposto do consumo, e da mocinha que recebera a carta esperada. Acabamos dormindo acompanhados de mulatas aprendizes,  na zona da beira do rio, o que nos levou trinta mil réis, além da cerveja e do frango assado. De manhã cedinho, antes de pegar o ônibus para a capital, olhei para o céu e vi as duas nuvens que pareciam caras de longas barbas: uma parecia sorrir, com o sol atrás de uma abertura que fazia o lugar da boca, a outra era fechada, sizuda. Entendi o recado divino. Quando o Catarinense sugeriu que fôssemos dar o golpe do cartomante em cidade do meio do caminho, cortei, logo: “Deus não faz gracinha duas vezes pra vagabundo”.
            Na capital, joguei o baralho de adivinho no lixo e voltei ao carteado normal, entre malandros e otários que acham que são malandros. E no jogo sujo de cunca, em que sou especialista,  Deus e diabo não se metem. É coisa de homem.

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