terça-feira, 17 de maio de 2011

FRITADA DE ESCORPIÕES

Era tempo de guerra nas lavras e garimpos. Armadas de “Winchesters” calibre 44, iluminadas pela azulada luz de carburetos, turmas de jagunços irrompiam nos acampamentos, antes do nascimento do sol. Os lavristas dormiam em cima de suas pedras e armavam complicados sistemas de alarme: na madrugada tiniam as latas de querosene, os cães ladravam e ecoavam, nas brenhas, os tiros das carabinas.

Eu era o escriturário daqueles homens. Contabilizava, em cadernos escolares, as remessas de escórias de berilo e malacacheta que, levadas em mulos, desciam córregos e rios, até a Figueira, para serem preparadas e enviadas à guerra grande na Europa. De vez em quando, no mulo que ia logo depois da besta-madrinha, ao som do cincerro, viajava um morto.

Jorito era amestrador de tatus, bons animais de lavra, se bem ensinados: recolhia-os nos ninhos, de casca ainda mole, e lhes dava leite de cabra com água e açúcar. Quando já maiores, enganchava-lhes, no rabo, uma correntinha e, depois dela, corda-de-arame trançada. O tatu abria longos buracos – pela terra se descobriam os veios.

Remualdo comia aranhas e escorpiões, era o que constava. Fazia fritadas com os bichos, depois de lhes extirpar os ferrões, e passava, de barraca em barraca, com o prato de alumínio, oferecendo uma provadinha aos homens que bebiam cachaça e cuspiam grosso.

Quando voltavam de Figueira, os tropeiros traziam novas mulheres para as lavras. Quase todas em sépia: muito poucas em tricromia. Era difícil pronunciar-lhes os nomes: Esther Williams, Dorothy Lamour, Evelyn Keyes. Dois anos e meio de lavra, sem sair da serra, Toinzão foi a Peçanha e voltou olhando a ponta do pé:

- Não deu jeito. Tou mesmo acostumado é com a gringa da revista.

De todos o mais manso era Dorô, magro, olho vermelho, carapinha cinzenta. Vivia o tempo inteiro triste e rezava todas as tardes. Sem serventia para o trabalho duro, não tinha túnel de seu: fazia biscates para uns e outros e “benzia” contra friagem e descadeiro. Certo dia baixou na lavra um delegado especial de capturas, com 30 praças armados de zebê e hotiquins: levaram uns 15. Gente de crime provado vinda de longe: pistoleiros do Alagoas, do Espírito Santo, até Mato Grosso. Dorô era o mais perigoso, disse o major da Força Pública. No seu rol de mortos havia até um senhor bispo do Nordeste.


No ponto mais alto os mastros de bambu levantavam a antena do rádio-galena. Na hora do repórter-esso da noite eu colocava os fones no ouvido e repetia para todos o que se passava em Sebastopol, Odessa e Leningrado.

- Esse Stálin ainda vai passear de espora, montado no Hitler, em Berlim – afiançava Bené, outro que a gente desconfiava ser escondido da polícia.

Quando acharam o grande bamburrio, a lavra acabou em sangue. Quem podia imaginar a pedra solteira, rolada não se sabe de onde, logo ali, entre as raízes da paineira? A paineira, no meio do acampamento, fora deixada de propósito, para dar sombra. No descanso do almoço, em cima dos caixotes em volta da árvore, jogava-se ronda e vinte-e-um. Um raio derrubou a paineira, de madrugada. Na terra fofa, bem perto do toco, apareceu a água-marinha. Um homem só não dava para movê-la. Eu que fui dos primeiros a chegar perto, apanhei duas lasquinhas e as escondi, depressa no bolso. Vi logo o que ia dar, e peguei o trilho no caminho da Poaia. Do altinho vi começar a briga. A pedra aparecera longe de qualquer serviço, mas cada um de todos queria ser seu dono sozinho. Depois de um tiro, os homens se esconderam atrás de qualquer coisa e a guerra ficou feia.

Com minhas duas pedrinhas no bolso – água-marinha forte, daquelas que valiam 50 mil réis o quilate – desci a rota dos tropeiros, até a Concórdia do Mucuri. Na fazenda do coronel Lúcio do Poté me deram remédio para susto, depois que eu contei a história do bambúrrio. O farmacêutico me comprou as pedras, pus a escrita da fazenda em dia, me emprestaram um animal para ser entregue em Itambacuri, na beira da estrada que ia para o mundo.

Muitos anos depois encontrei, em Teófilo Otoni, Toinzão, com uma só orelha. Não quis me contar tudo o que aconteceu:

- Só sei que a briga começou no tiro e acabou na foice.

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