domingo, 24 de julho de 2011

A CATEDRAL

Tantos que foram os anos, talvez a  memória me engane. Certas coisas – e que seriam importantes em qualquer relato – me ocorrem como sombras sem contornos. Não sei exatamente em que lugar se encontrava a mais humilde de todas as capelas que conheci, de pau a pique, coberta de palha de buriti (ou de sapê, como posso precisar?), o altar montado em jirau de taquara, com as toscas imagens, que não se pareciam a nenhum santo conhecido, mas todas coroadas com seu halo feito de cipó amarelo, bem fininho e trançado com muito zelo. Os santos eram esculpidos em barro cru, mas – ao que me pareceu – cobertos de clara de ovo, para que não quebrassem.
             Sobre o altar, pregada na parede também de barro, em folha dupla de papel almaço, a saudação do anjo ao nascimento de Cristo: Paz na Terra aos Homens de Boa Vontade. O chão, de terra batida, ainda mostrava os rastros da vassoura, de ramos de alecrim-do-campo, encostada a um canto. Era o sinal de que alguém cuidava bem da capelinha. Não havia como sentar-me: era uma capela feita para a genuflexão. Dobrei os joelhos e rezei àqueles santos e santas desconhecidos: era um homem, uma mulher e seu filho. Pensei na Santíssima Trindade, mas talvez não fosse. Podiam ser um santo qualquer, que não José, o Carpinteiro, uma santa qualquer, e não a Virgem Maria. E o menino, disso estou certo, não tinha nada a ver com Jesus. Era um menino já parrudinho, não o da gruta. Tinha os olhos esbugalhados, talvez de espanto, desproporcionais ao rosto. Assim mesmo, orei. Disso andava precisado, como sempre andei.
            Rezei o padre-nosso e a ave-maria, que sabia de cor, e tentei rezar a Salve Rainha, mas, como até hoje, tropecei aqui e ali. Quando chegava ao “vale de lágrimas”, me perdia, ao imaginar um imenso vale, cheio de lágrimas. Não há lágrimas que encham um vale. Poderia ser um vale de contas, das que se fazem os rosários, e que se chamam lágrimas de Nossa Senhora. Mas, não: o autor da prece deve ter pensado nas lágrimas de Nossa Senhora diante do filho morto.
             Entardecia, e já viajara um bom tempo, não me lembro se contra o sol ou se minha sombra ia adiante, e não vira viva alma desde que me despedira do último pouso, em fazendinha qualquer. Minha memória anda vasqueira. Não vira viva alma pelo caminho e já era hora de suprir-me de novo da paçoca do embornal.
           Na frente da capelinha, vinda do morro pedregoso, descia uma agüinha e a bica, de meia taquara, talvez servisse – pensei - para algum batizado, se algum cristãozinho precisasse disso, na hora da morte e tão longe dos padres.
            Bebi da água, que era suave, leve, muito fria, naquela tarde mormaça, dessas que prometem chuva noturna, para empurrar a paçoca, já meio encaroçada, goela abaixo. E pensei comigo que era mais no jeito dormir por ali mesmo, na capela. Na encostinha do lado, disso me lembro bem, crescia, estrangeiro naquele pedaço de mato nativo, uma braça de capim-gordura. Com meu canivetinho corneta, cortei umas duas braçadas do capim e ajeitei uma cama dentro do rancho-capela, mas, por respeito, bem longe do jirau do altar.
            Custei a dormir e acho, já que a memória me confunde, que sonhei com os santos de barro. Nessa lembrança confusa, eles se identificaram como gente dali mesmo, de um arraial qualquer, que haviam sido modelados pelo beato para ornar a igrejinha vagabunda. No sonho, o beato também aparecia, para dizer que se  somos iguais a Cristo, na pobreza e no sofrimento, todos somos também santos - e bem merecemos um altar. Que Deus me perdoe a blasfêmia.
            Acordei com o sol, que vinha das frestas da cafuazinha, coçando as pestanas. Dei mais uma ajoelhada, agradeci o pouso, esperei do lado de fora para ver se o beato, ou quem quer que fosse, aparecesse. Como a paçoca acabara, achei melhor desistir e buscar rumo, depois de encher a cabaça com a agüinha da bica. Até hoje, com a discrição que convém a um agnóstico, continuo devoto daqueles santos de barro pobre, naquela capelinha de nada que foi a minha catedral.

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