segunda-feira, 18 de julho de 2011

OS OLHOS DA ONÇA

O último a morrer foi Nicácio. Alto, seco, de gogó ossudo, povoado de pêlos brancos, resultou em cadáver de bom termo. Não era morto que parecesse vivo, mas tampouco assustasse. Um defunto decente, convenhamos. Os que o sepultaram, em tarde quente, voltaram para casa com dois sentimentos. Com o velho teimoso acabava o ódio dos Antunes, que durara pelo menos 50 anos, mas ficava em seu lugar o vazio. Não poderiam divertir-se mais com o ritual de todas as madrugadas, quando, cumprindo sua promessa insolente, Nicácio escolhia a campa de um de seus irmãos para nela verter as primeiras águas do dia.
           Em seu passo lento, ao se encontrar com os raros transeuntes da alvorada, informava, a voz alegre, canalha:
           - Acabei de aguar os ossos do Anacleto. Amanhã vai ser o Teodomiro. Sábado é o dia da Odélia.
           Toda a cidade sabia da imprecação matinal. Nicácio conversava com seus mortos, dava notícias de seus bens: “Teodomiro, estou criando uns porquinhos na sua casa. Afinal, aquilo ali sempre serviu mesmo para cevar capado. Agora, toma lá” - e, enquanto molhava o túmulo, repetia todos os sujos palavrões antigos. 
           O que seria, depois de ido Nicácio, daquelas quatro casas, cada uma delas em seu ângulo do quarteirão, separadas por altos muros, com as ruínas da primeira moradia no centro? Ele esperara morrer o último dos irmãos para profanar-lhes os túmulos. Coube-lhe, por sorte, a doce recompensa da sordidez – mas não seria diferente com qualquer um dos outros. Detestavam-se com a mesma força. À ira, silenciosa, velhaca, dedicaram a vida inteira. Renunciaram ao amor, desprezaram o luxo, desdenharam a gula e foram castos. Antes de dividida a fortuna – e não estava nisso a raiz da discórdia – foram vistos juntos, pela última vez, no sepultamento da mãe. Era miúda e seca, e poderiam ter segurado as alças do ataúde com o dedo mínimo, tão leve estava. No portão do cemitério aceitaram as condolências e se dispersaram. Foi nesse momento, segundo a tradição oral, que se prometeram, insolentemente, a raiva eterna.
         Enquanto viva, Maria do Perpétuo Socorro mantivera unida a família sob uma autoridade feroz que contrastava com sua fragilidade física. Tinha, porém, os olhos acesos de onça parida, e lábios finos que nunca sorriam. Nunca afagou os filhos: pequenos, deixava-os aos cuidados das criadas; maiores, ficaram por conta do professor contratado, a quem dera instruções de severidade e uma palmatória. “O senhor vai fazer homens desses meninos. Não tenho marido e, se ainda o tivesse, de pouco me valeria. Não quero fracotes como foi o pai, aqui em casa. E não poupe a menina: não cresça assanhada, nem melindrosa”. Corriam lendas de que despachara o marido com mistura de ervas fortes, preparada por um raizeiro do Morro Preto. O certo é que ele, mau poeta e bom mulhereiro, arriara a trouxa na casa de Mariana das Trancinhas, depois de um recital de versos alexandrinos e bom desempenho específico.
          Por que se detestavam, mesmo, ninguém sabia. Orosimbo punha a culpa na mãe (“aquilo era  uma bruxa de areia nos seios, seca feito coivara do ano passado”) e padre Bento responsabilizava o demônio. Daquela família jamais saíra uma prenda para as festas do padroeiro.
          Construíram as casas, depois de repartido o terreno em áreas iguais, respeitada e excluída a residência antiga, que ruiu sozinha. Os outros bens – terras, gado, ações – fizeram um fundo de que três gerações de advogados cuidaram com zelo e de cujos resultados se valiam, com parcimônia, todos os herdeiros.
          Aberto o testamento de Nicácio, o último legatário, houve a surpresa: mandava transformar o terreno em jardim público e distribuir os bens sobrantes, convertidos em dinheiro, a todas as famílias do lugar. Ao padre Bento, que o confessou nas últimas, Nicácio pediu desculpas ao povo pelo desrespeito ao cemitério, mas não se arrependeu da raiva: 
         - Se Deus não perdoa, não faz mal, padre. Valeu a pena.   

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