sexta-feira, 22 de julho de 2011

O CANTOR DAS ÁGUAS

A canção, morna, vinha do rio, com sua aragem. Só se distinguiam, dentro dos acordes que embriagavam, umas poucas palavras: vem, espero, braços, alma. Sentiam-se, com as notas, odores que, como os sons, atraíam as mulheres – e mais ainda nas madrugadas quentes. Mas não havia hora para o encantamento: Dozinha, casada de pouco, caminhou apressada para o rio em pleno meio-dia,  enquanto seu marido, com saudades da noite, voltava correndo da roça, levando nas mãos uma orquídea branca. Entrevada em seu catre, a sogra ouviu a mesma toada e sentiu o mesmo cheiro, mesclado de baunilha e almíscar. “Fiquei meio doida, e falei com Dozinha que fosse, que eu também ia, se pudesse” – confessou depois ao filho.
           Era o barqueiro. Em tempos bem passados, quando o Rio das Velhas navegava, um rapaz de Santa Luzia se apaixonou pela irmã. A moça, seduzida pelos seus olhos, castanhos e desmaiados, a ele se entregou. Arrependida de pecar contra Deus, afogou-se nas águas cheias de março.
          Depois disso, continuava a lenda, ele arrumou seu barco e saiu, procurando a irmã no leito do rio, de seus afluentes e do São Francisco, que leva aquelas águas ao mar. Ninguém o via. As mulheres que encantava nunca se lembravam de seu rosto. Recordavam o calor cheiroso e o gosto inenarrável de seus lábios.
          Delzira, uma delas, voltara da praia guardando na boca a saliva do moço do rio. Ao chegar à casa, enlouquecida de prazer, cuspiu grãos de ouro na baciinha de lavar o rosto. Cresceu, a partir de então, a sedução do encantamento e, mesmo sem ouvir-lhe o chamar, mulheres saíam  de casa, sonâmbulas e silenciosas,  nas noites de lua, e se despiam, na inútil espera das praias vazias. Voltavam tristes ao amanhecer, e amavam seus maridos com a fúria do cio.
             Passavam-se anos sem que houvesse notícias do moço do rio. “Ele só aparece de sete em sete anos”, explicava um espiritista de Jequitibá. “É o tempo que ele tem para chegar ao mar e voltar”. Segundo sua teoria, alimentada de leituras gregas, o moço fora condenado a resgatar das águas o corpo imperecível da irmã. “Se ele  encontrar o corpo, ela ressurgirá dos mortos, e cumprirá o seu destino, que ele roubou. E será a vez de ele morrer. Para ter fôlego de ir sempre ao fundo,  deve buscar o alento nas mulheres da beira do rio”.
          Juntinho da barra do Rio Cipó viveu, de 1918 a 1949, dona Marcela, a italiana. Passou trinta e um anos à espera de seu retorno, mas o moço nunca abraçou duas vezes a mesma mulher. Dona Marcela chegara àqueles belos ermos do Espinhaço acompanhando o marido geólogo, que buscava sinais de diamantes. Era, então, muito jovem, recém-chegada de Rovereto, ao sul de Trento e ao norte de Verona. Como fazia nos verões de seu rio natal,  banhou-se nas águas límpidas do Cipó. Braços lúdicos a carregaram para as águas mais densas do êxtase. Depois disso, não saiu mais dali. O marido, amoroso e resignado com o que lhe parecia loucura, construiu-lhe um rancho junto à confluência das águas, comprou terras próximas, lavrou-as, disso viveu. Cuidou da mulher,  até que ela morresse. A italiana se banhava, no mesmo lugar, todas as noites e, com sua voz de contralto, que os anos enrouqueceram, tentava reproduzir os acordes ouvidos naquela remota lua cheia de 1918.
          Em novembro de 1949, pescadores de Curvelo encontraram seu corpo desnudo, na praia estreita. Deitada de bruços, sobre leve elevação da areia, tinha entre as mãos uma touceira de capim, limpa pelas águas, e os dedos mortos pareciam acariciá-la, como se fossem cabelos. O marido sepultou-a por ali mesmo – e voltou para o seu país.
         A última notícia confiável do moço do rio data de 1955, o que contraria a cabalística volta setenal.  Naquele ano, um jornal de Belo Horizonte chegou a publicar sucinto caso de uma jovem que se dizia seduzida e violada por misterioso mergulhador. O fato ocorrera em Baldim, e o desconhecido cantava uma modinha muito antiga. Sua versão foi jocosamente comentada e, por algum tempo, os gaiatos perguntavam às moças do lugar: “como é, você já foi à beira do rio?”
         Um repórter foi então despachado para investigar o caso, nas margens do Rio das Velhas e seus afluentes médios, onde ocorriam tais visagens. Mas a matéria foi recusada. Ninguém quis acreditar. 

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